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Instabilidade volta à Guiné-Bissau

Umaro Sissoco Embaló está em conflito com militares, advogados, o Parlamento, o Governo que nomeou e até o seu partido. O regresso a Bissau do ex-adversário eleitoral Domingos Simões Pereira alimenta receios de rutura política.

sequestro e espancamento do jornalista António Aly Silva e o regresso a Bissau, sexta-feira, de Domingos Simões Pereira — antigo primeiro-ministro e líder do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), a maior força política do país — estão a agitar a pacata capital guineense. O Presidente da República, Sissoco Embaló, parece estar em conflito em várias frentes e confirmou rumores de um golpe em preparação contra o seu regime.

Quase um ano depois de ter escapado a uma tentativa de rapto noturno, Aly Silva, que assina o popular e muito bem informado blogue “Ditadura de Consenso”, teve a vida por um fio na passada terça-feira, dia 9 de março. Homens armados e de rostos encobertos intercetaram-no à luz do dia numa das saídas da movimentada rotunda da Baiana, no centro da cidade, e levaram-no para destino incerto, após violentas agressões físicas que o deixaram com um corte na língua e o rosto inflamado e com feridas.

No mesmo dia à tarde um grupo de amigos acampados numa casa abandonada deram com o jornalista semi-inconsciente, a sangrar e com os olhos vendados com a própria camisa, nas margens do estuário do rio Geba, numa zona pouco frequentada do Alto Bandim, bairro situado a cinco minutos do local do rapto.

No tempo colonial esta parte de Bandim era conhecida por Sacor, por causa dos depósitos da empresa de distribuição de combustível, que ainda hoje alberga. As pessoas foram alertadas pela velocidade com que as duas viaturas dos raptores entraram no local, quase ermo, também chamado “Pedreira”, nas traseiras dos depósitos de combustível.

Este incidente chocou a opinião pública e mereceu amplo repúdio, a ponto de uma vintena de organizações da sociedade civil terem reclamado a demissão do ministro do Interior e do procurador-geral da República.

As suspeitas de Aly, ex-colaborador do extinto semanário “O Independente” e apoiante declarado de Simões Pereira, recaem sobre o próprio chefe de Estado. Segundo o jornalista, Sissoco telefonou-lhe mais de uma vez a reclamar contra as suas publicações online. Numa das últimas chamadas não hesitou em proferir ameaças de mandar “pô-lo no seu lugar”.

Em menos de um ano, várias personalidades públicas foram alvo deste tipo de violência, incluindo um deputado da oposição, sem que os autores dos crimes tenham sido identificados e punidos. Uma rádio muito escutada da capital deixou de emitir cerca de um mês, depois de ter sido atacada e vandalizada no ano passado por pessoas armadas não identificadas. Em outubro último, dois bloguistas e ativistas do partido MADEM G15, da aliança que sustenta o atual regime, detidos e espancados nas instalações do palácio presidencial, acusaram o chefe da segurança presidencial, Cherno Bari, pelas sevícias.

Obsessão securitária e deriva autoritária

Na Guiné-Bissau são poucos os que duvidam da implicação das autoridades em mais este atentado contra a liberdade de expressão. O que não é claro é a causa imediata do aparente tiro no pé do regime de Bissau. Terá sido receio da repetição no país das violentas manifestações populares que varreram o vizinho Senegal cerca de duas semanas antes?

No dia do sequestro de Aly Silva, este publicou no seu blogue a convocatória, já antes amplamente divulgada nas redes sociais, de uma marcha de protesto prevista para 27 de março, supostamente convocada por jovens, contra a “ditadura e o terrorismo” e a exigir “Sissoco fora do palácio”.

A perspetiva desta já designada “Primavera” oeste-africana poderá acontecer já com a presença em Bissau de Simões Pereira, o carismático presidente do PAIGC, que venceu as últimas eleições legislativas em 2019, mas que se encontra na oposição. O regresso de DSP, como também é chamado, após um ano de permanência em Lisboa, poderá dar novo vigor à contestação ao poder instalado.

O político foi à segunda volta das presidenciais de 2019 com Sissoco, em que oficialmente perdeu (46%-54%), mas contesta os resultados. Acolheu-o uma multidão de apoiantes, tanto no aeroporto como na sede do partido, apesar do uso de gás lacrimogéneo e bastonadas pela polícia para dispersá-los.

PRESIDENCIALISMO MUSCULADO

 Desde que se autoproclamou Presidente, a 27 de Fevereiro de 2020 (com apoio de forte aparato militar e sem aguardar a decisão judicial sobre os resultados), Sissoco vem exercendo um mandato de pendor presidencialista e musculado, incompatível com o semipresidencialismo em vigor na Guiné, o que lhe valeu vários atritos. Entrou em rota de colisão com a liderança do seu próprio partido e com o primeiro-ministro Nuno Gomes Nabiam, que nomeou após tomar posse.

Ao nomear um vice-primeiro-ministro encarregado da área económica, inexistente na orgânica do Executivo, o chefe de Estado esvaziou o chefe de Governo do essencial das suas prerrogativas. Nabiam mantém-se em funções, mas está descontente. Para formalizar o regime presidencialista, Sissoco nomeou a sua própria comissão de revisão constitucional, à revelia do Parlamento, que tem primazia nesta matéria e já quase concluíra uma proposta de revisão.

Pisando, uma vez mais, os calcanhares ao poder legislativo, que dentro de uma semana vai submeter a discussão pública o projeto parlamentar de revisão constitucional, Sissoco anunciou que vai referendar este ano o seu próprio projecto de revisão.

O Presidente também encetou um braço de ferro com a justiça, depois de ter ordenado, por razões de segurança, a evacuação da sede Ordem dos Advogados da Guiné-Bissau, que fica ao lado do palácio presidencial, atribuído aos causídicos pelo falecido Presidente Kumba Yalá. Os advogados exigiram a restituição da sua sede e o tribunal deu-lhes razão, mas ainda assim a disputa continua em impasse.

A relação mais complicada, contudo, é a que o Presidente mantém com a cúpula militar. As fortificações nos muros da presidência, os persistentes boatos sobre descarga de material militar sem o conhecimento das autoridades castrenses, assim como o treino no estrangeiro de uma guarda pretoriana do chefe de Estado, são indícios de mal-estar e desconfiança entre o palácio e a Amura, sede do Estado-Maior General das Forças Armadas. E que alimentam os múltiplos rumores de novos ajustes de contas em Bissau.

Texto: Expresso

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