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As cantadas saudades de Kambuengo

Por: José dos Santos*
De Brazzaville de nascimento acidental, Luanda sempre foi a capital de eleição e inspiração de Eduardo Paím.
O seu percurso musical e a sua veia criativa bem atestam isso: a capital angolana, com os seus múltiplos contrastes, tem o condão que encher de alegria e, ao mesmo, de grande carga nostálgica quem nela nasceu e, de repente, se vê distante.
E Paím não foi excepção. Depois de uma carreira já consolidada intramuros, precisou expandir e internacionalizar a sua carreira. Portugal foi a porta que se lhe franqueou rapidamente.
Sem o cheiro a barro do chão pátrio, com pais, irmãos e amigos de longa data distante até do binóculo, as lágrimas, insistentemente, espreitavam-lhe o canto do olho e, não raras vezes, serpenteavam-lhe o rosto.
Mesmo animado com as oportunidades de um mercado mais atraente, como é o português, mais aberto e evoluído para o relançamento da carreira, a eterna saudade da banda consumia-o; devorava-o por dentro.
E veio, então, a primeira carta de saudade a sua Luanda para espantar os seus e os males da sua alma.
«(…) Kanjila/leva-me esta mukanda/ pra o meu povo na banda/Kanjila/pousa no Marçal, na Mutamba ou na Samba/Lá são todos meus kambas/ (…) Ai, que vontade de dar uma fimba no Mussulo/pancar um mufete à maneira/dormir n’areia/sonhar com a sereia/a nossa kyanda/lá da banda (…)»
Para esta experimentação de exorcismo; este descarrego sentimental, Eduardo Paím escolheu – a dedo, diga-se – um par perfeito. Nada mais nada menos que Paulo Flores, um outro filho de Angola a debutar na música e, por isso, em busca do seu pedaço de chão, que não regateou na hora de emprestar a sua voz solidária…
«Da Chicala ao Farol/tem praia tem sol/e kilumbas ali a desfilar (…)»
Era o primeiro recado; a primeira mukanda de um sentimento saudosista do seu Kassenda e de toda uma Luanda, que morrendo na Samba-Grande e Cacuaco, permitia sempre aventuras de muita agitação, sobretudo noctívagas.
«Hoje vou apanhar uma torra/vou fazer a minha desforra/vou patar numa festa qualquer/desbundar até amanhecer (…)».
Paím sabe e conhece bem estes momentos repletos de sorrisos, conversas altas, jogar fofoca em dia, bater nas costas e estigas. E, às vezes, não poucas, também de jivunda – muitas kíbwas, capangas, maigués e fuga-a-sete-pés de toda a maralha para evitar mais problemas e escapar das garras dos zelosos «caingas».
«Eu então não sou de kijila/Gosto mbora bué de kazukutas/entre meus avilos e avilas»
Kambuengo deixava bem vincada a sua predisposição para animadas tertúlias com amigos de todas as latitudes. Do Kassenda, Alvalade, Prenda… do Instituto Médio Industrial de Luanda, o célebre Makarenko, onde frequentara, pelo menos até ao terceiro ano o curso de electricidade.
Os tempos de efervescência política encontraram-no já a debutar para a adolescência. Contava, então, 12 anos. Viveu todos os tempos da «outra senhora». A vida nos subúrbios, a exclusão indígena e, com um olhar ainda mirim, o envolvimento dos pais na clandestinidade. Eram muitas vidas e outras vivências.
E surgiu, dessas andanças, mais uma epístola, escrita a partir da mukweba.
«(…) recordo agora as caçumbulas d’outrora/as baronas jingonas s’estilando ali na zona/aquele musseque que me viu moleque/a nossa kubata que era feita de lata/ (…) esta keta me recorda o tempo que o tempo levou».
O tempo levou, ficaram as lembranças de um tempo que o tempo jamais apaga, proporcionada por uma repleta de vida de sonhos, da berrida dos candengues de calção roto no rabo, aproveitando um pneu ou jante inutilizados para desaparecer, a zunir, no horizonte.
Havia uma Luanda que acontecia todos os dias. Uma Luanda de uma felicidade desconhecida. Uma Luanda que se descosia por completo; dos homens muhungueiros, que abandonam os lares para a farras e copos.
E das kitutas, mulheres de má fama, vendedoras de «matakus» para, numas vezes, suprir as muitas necessidades que se lhe cruzavam o caminho e, noutras vezes, por pura voluptuosidade. Por isso, essas, não escapavam dos comentários maldizentes de gente do bairro.
«Senhor coveiro afamado bisbilhoteiro/inventava intrigas/que acabavam em brigas».
A vida, porém, nem sempre é um mar-de-rosas. Em muitas ocasiões também faz experimentar o seu fel. E a desgraça alheia – mesmo sem se rir dela – entra igualmente no cardápio das recordações e enriquece o vasto menu das saudades…
Com o seu já conhecido poder criativo, Paím vai ao baú e brinda os seus fãs com uma bem suculenta mistura da kazukuta angolana e o sokouss do outro lado da fronteira, o Zaire.
«Xé, xé/cuidado com este muadiê/xé, xé/toma mbor’atenção/kota Seba aindas não melhorou/desde que a pinta bazou/vou na conversa doutro muadiê/(…) ele fala muito (…)».
Se de Luanda era intensa a dor de a ver distante, o coração apertava-se-lhe ainda mais com as recordações das suas gentes; do contagiante sorriso rasgado, de orelha a orelha, mesmo em meio a adversidades mil.
São muitas e eternas saudades musicadas do General Kambuengo que não cabem nestas saudades.
*Extraído do Facebook

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