Jair Bolsonaro corre o risco de se tornar inelegível ou mesmo de ser detido por participação nos ataques de dia 8 em Brasília, entre outros processos. Mas, mesmo que escape da justiça, aliados e oposição concordam que perdeu capital eleitoral, ao revelar-se politicamente omisso, desde o sufrágio de outubro, e fisicamente ausente, desde a posse do rival Lula da Silva.
Na Florida, de férias, assistiu ao choque internacional causado pelas invasões, viu um ministro ser preso, os gastos milionários com o cartão da presidência divulgados e a fome em reservas indígenas, que foi ignorando, escancarada.
Com o ex-presidente previsivelmente fora de combate em 2026, aonde podem ir parar os 58 milhões de votos que ele conquistou em 2022?
A direita, pressentindo o vácuo, move-se para o preencher. Para o cientista social Jorge Chaloub, que estuda a direita brasileira do pós-guerra, “Bolsonaro não criou um partido nem conseguiu dominar completamente um partido por isso a tendência agora é que o campo dele se pulverize”. A antropóloga Letícia Cesarino, da Universidade Federal de Santa Catarina, sublinhou que “a extrema-direita no Brasil não é só o bolsonarismo”, em conversa com a edição brasileira do jornal Deutsche Welle.
“A letargia de Bolsonaro, desde a sua derrota em outubro, abriu um espaço gigante na corrida pela liderança da oposição ao governo Lula”, opinou Thomas Traumann, investigador da Faculdade Getúlio Vargas, em coluna no site Poder360. “E a ameaça real de que o inquérito no Supremo Tribunal Federal sobre a intentona do 8 de janeiro conclua com a suspensão dos seus direitos políticos tornou pública a disputa”.
Traumann avança com três nomes na lista de sucessão de Bolsonaro. “A disputa pelos órfãos do bolsonarismo está entre o vice de Bolsonaro, o senador Hamilton Mourão, e os governadores de Minas Gerais, Romeu Zema, e de São Paulo, Tarcísio de Freitas”.
O pontapé de saída foi dado por Mourão (do partido Republicanos), com quem o ex-presidente manteve relação tensa, em discurso de fim de ano nas rádios e televisões. “Lideranças que deveriam tranquilizar e unir a nação em torno de um projeto de país deixaram que o silêncio ou o protagonismo inoportuno e deletério criasse um clima de caos e de desagregação social”, afirmou o ex-vice, num ataque óbvio a Bolsonaro.
E, nas horas seguintes aos ataques golpistas de 8 de janeiro, Mourão já reivindicou o papel de “anti-Lula”. “A detenção indiscriminada de mais de 1200 pessoas, que hoje estão confinadas em condições precárias nas instalações da Polícia Federal em Brasília, mostra que o novo governo, coerente com suas raízes marxistas-leninistas, age de forma amadora, desumana e ilegal”.
No mesmo tom, Romeu Zema, reeleito governador de Minas Gerais pelo Novo, espécie de Iniciativa Liberal brasileira, disse que a 8 de janeiro “houve um erro da direita radical, que, lembrando, é uma minoria, e houve um erro também, talvez até proposital, do governo para que o pior acontecesse e ele se fizesse posteriormente de vítima”.
Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, esteve, como Zema, no encontro de governadores proposto por Lula logo após os ataques, mas, ao contrário do colega de Minas Gerais, no dia seguinte apertou a mão a Lula, após reunião. Fiel à fama de pragmático, o político do Republicanos, tratou da privatização do Porto de Santos, uma das suas bandeiras de campanha a que o presidente da República não fechou as portas.
Mas há mais candidatos brasileiros a Ron DeSantis, o político que desafia a influência de Donald Trump na direita dos EUA. O presidente da bancada evangélica na Câmara dos Deputados, Sóstenes Cavalcante, do PL, mesmo partido de Bolsonaro, diz que ao ex-presidente restam dois caminhos – liderar a oposição ou tornar-se um mentor.
“Bolsonaro ajudou a fomentar um campo eleitoral que é um misto de nacionalismo, iniciativa privada, agronegócio, grandes empresários e os segmentos religioso e militar”. “Amanhã”, sublinhou no jornal Folha de S. Paulo, “podem cumprir esse papel o Tarcísio de Freitas ou o Romeu Zema mas também o Jorginho Mello [governador de Santa Catarina], o Ronaldo Caiado [governador de Goiás] e a própria Michelle Bolsonaro, que se tornou muito carismática”. A ex-primeira-dama, que fora para a Florida com o marido, regressou na quinta-feira ao Brasil, tendo chegado ao aeroporto de Brasília de boné e máscara contra a covid.
Ao contrário de Sóstenes Cavalcante, o deputado de direita Kim Kataguiri (União Brasil), fundador do Movimento Brasil Livre, grupo que ganhou projeção durante as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, deixou de ser bolsonarista. Para ele, o eleitorado de direita está “disposto a abraçar novas lideranças, até porque Bolsonaro já tem dado nota de perder o controlo do seu eleitorado, mesmo o núcleo mais radical, com os últimos acontecimentos de Brasília e com os ataques que bolsonaristas têm trocado entre si”.
“Há”, para Kataguiri, “um vácuo de liderança e o próprio silêncio dele evidencia isso”. Nesse contexto, o MBL, que pretende tornar-se partido político, “vai construir para 2026 a candidatura do Danilo Gentili”, assegura. Gentili é um apresentador de talk shows e comediante.
Questionado sobre se a solução não lembraria a Ucrânia, já que o mandatário do país europeu, Volodymyr Zelensky, é humorista, Kataguiri lembrou que Ronald Reagan, o antigo presidente dos EUA visto como referência do MBL, também transitou dos ecrãs para a Casa Branca, em 1981.
Artigo no Gazeta do Povo, jornal de Curitiba conotado com a direita, cita, entretanto, uma fonte próxima a Valdemar Costa Neto, o presidente do partido de Bolsonaro, a assumir que o ex-presidente “ainda é uma peça importante [na direita] mas não a única”. Segundo o artigo, o próprio núcleo do ex-presidente lança Zema ou Ratinho Júnior, governador do Paraná, ambos em segundo mandato, como alternativas. Tarcísio de Freitas, por estar no primeiro, deve priorizar a reeleição em São Paulo, estado vital para o projeto da direita.
O jornal garante ainda que Bolsonaro está a par da maioria das movimentações e não dá por adquirida a sua saída de cena.
“Bolsonaro não está morto”, lembra Traumann na sua coluna. Nos últimos anos, amparado pela força popular e pela máquina online que o suportam atropelou o ex-governador paulista João Doria e o ex-juiz Sergio Moro, aspirantes supostamente competitivos a porta-bandeiras da direita.