Opinião

Filhinhos dos Generais da UNITA

A recomposição da liderança da UNITA trouxe para a linha da frente rostos muito mais jovens, quadros que nasceram politicamente já no rescaldo da guerra e que, por isso mesmo, carregam outras urgências e outro tipo de inquietações. A sua ascensão gerou, inevitavelmente, murmúrios sobre um certo nepotismo velado; alguns são, de facto, filhos de figuras que ocuparam cargos de grande relevo no movimento, herdeiros de apelidos pesados e memórias densas. Mas, passados os rumores de corredor, o que verdadeiramente importa é olhar para as trajectórias concretas destas pessoas, para o modo como foram tecendo, dia após dia, a sua autoridade moral e política.

Recordo a primeira vez que vi Navita Ngolo num acto do partido. Era quase uma menina, recém-chegada da universidade, com os cadernos ainda debaixo do braço, sentada discretamente a escutar os mais velhos discutirem multinacionais, geopolítica e a aritmética áspera da luta pelo poder. Não falava muito; ouvia. Havia naquela concentração um respeito quase litúrgico pela conversa dos mais experientes e, ao mesmo tempo, uma fome de mundo que se via nos olhos.

Com o tempo, tornou-se economista brilhante, licenciada pela Universidade Católica, mestre em Finanças Públicas por uma universidade em Portugal. O percurso académico podia tê-la empurrado para uma carreira confortável na administração ou numa instituição internacional; em vez disso, preferiu a dupla carga da investigação e da militância. Enquanto preparava exames, ia preparando também plenárias; enquanto escrevia trabalhos, escrevia igualmente moções, discursos, relatórios. Onde houvesse uma grande actividade do partido, era quase certo encontrá-la, extenuada mas presente.

Há um vídeo que me ficou na memória: Navita, ainda muito nova, envolvida num empurra-empurra com a polícia, algures na Lunda, o corpo frágil a enfrentar escudos e fardas, como se a convicção tivesse decidido por ela o lugar onde devia estar. Noutra ocasião, lembro-me de um Natal em que decidiu passá-lo sozinha, em Benguela, entre comícios e reuniões, porque havia um acto político que precisava da sua presença. Nas redes, muitos riram-se; acharam extravagante que alguém tão jovem levasse a política tão a sério, ao ponto de trocar a mesa cheia da família por um quarto alugado e um programa de trabalho. A mim, o que me impressionou foi essa quase teimosia vocacional: a sensação de que ela tinha escolhido um lado da história e estava disposta a pagar o preço.

Também conheci Liberty Chiyaka quando ainda era muito novo, nos tempos em que representava a UNITA no Huambo. Convidou-me à sua casa. Esperava encontrar a sala desarrumada de um jovem activista, com cartazes nas paredes; em vez disso, deparei-me com uma mesa coberta de folhas. Não eram simples listas: pareciam censos minuciosos, tabelas com nomes de militantes, contactos, zonas, núcleos. Era como se tivesse transformado aquele espaço doméstico num pequeno gabinete de planeamento.

Liberty tinha já a gravidade de quem enxerga a política como serviço e disciplina. Não era o tipo de jovem que passa as tardes na praia; não era o noctívago das pistas de dança de Luanda. As suas noites eram de outro género: sucessivas reuniões, leitura paciente de relatórios, revisões de listas, o telefone sempre a tocar com problemas de base, conflitos locais, pequenas crises que exigiam presença e serenidade.

Todos estes que hoje surgem como dirigentes, alvos de comentários e suspeitas, foram, na prática, os estagiários mais mal pagos da história recente de Angola. Rapazes e raparigas que entraram na política sabendo, com uma lucidez por vezes cruel, que não o faziam pela compensação monetária. Muitas vezes tinham de pôr do seu bolso para viajar, imprimir documentos, manter uma presença minimamente digna nos espaços públicos.

Vários foram criando pequenos negócios paralelos, actividades laterais, lavras, lojas, consultorias, qualquer coisa que gerasse o dinheiro necessário para sustentar a família e custear a militância. A política, para esta geração, não foi porta de acesso a privilégios imediatos; foi antes um encargo pesado, um dever que exigia sacrificar fins-de-semana, férias, Natais. Andam entre gabinete e bairro, entre plenária e táxi, movidos por uma fé quase irracional de que o país poderá ser mais justo por causa da teimosia deles.

Tanto em Navita como em Liberty e noutros da mesma fornada, há algo que escapa à acusação de nepotismo. Sim, muitos cresceram a ouvir em casa nomes pesados; sim, vivem debaixo da sombra de uma história que não escolheram. Mas a autoridade que carregam não nasceu do apelido; nasceu dessas noites mal dormidas, desses Natais longe da família, dessas salas de papéis onde decidiram encontrar o seu caminho.

A renovação da liderança da UNITA pode ser lida como jogo de famílias, se quisermos ficar pela superfície. Vista de perto, porém, revela educação de carácter: jovens que trocaram a promessa de uma vida leve pela dureza de um compromisso. No fim, é isto que conta: não a árvore genealógica, mas a disposição para servir uma causa maior do que o conforto.

Sousa Jamba (In Facebook)

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