A política angolana acaba de assistir a um movimento que, embora discreto na forma, é profundo no seu significado: Jardo Muekalia, figura emblemática da diplomacia da UNITA e antigo representante do partido nos Estados Unidos, abandonou as fileiras que o formaram e aderiu ao PRA-JA Servir Angola, liderado por Abel Chivukuvuku.
Para muitos, a decisão é apenas mais uma dança partidária. Para outros, é uma traição ideológica. Mas talvez seja mais do que isso — talvez seja um sintoma de algo que a política angolana ainda não aprendeu a nomear: a crise de compromisso.
Jardo não é um político qualquer. Durante décadas foi a expressão máxima da diplomacia da UNITA, interlocutor de Washington, estratega de bastidores e nome cotado para suceder Isaías Samakuva. Consta que recusou o posto, preferindo manter-se nos Estados Unidos, gerindo a sua empresa de lobby político (Maka Angola, 2012; DW África, 2020). Um intelectual de alto nível, resolvido financeiramente, que agora retorna à política ativa — mas não pela porta que o consagrou.
A adesão ao PRA-JA pode ser lida como um gesto de renovação. Mas também levanta perguntas incômodas:
• O que leva um quadro histórico a abandonar sua casa política sem prestar contas aos militantes que o sustentaram?
• Que tipo de compromisso sobrevive à travessia do deserto ideológico?
• E, sobretudo, que lugar ocupa a lealdade num sistema partidário marcado por rupturas silenciosas?
Abel Chivukuvuku, por sua vez, é frequentemente rotulado de forma injusta — como falso, traidor, ou até instável (Novo Jornal, 2021). Mas a verdade é que ele é um jogador de política com visão estratégica. Sua capacidade de atrair figuras como Jardo revela não apenas habilidade, mas também um vazio deixado por partidos que não souberam cuidar dos seus quadros.
A UNITA, neste caso, não perde apenas um nome. Perde uma narrativa. E Jardo, ao sair sem explicações públicas, corre o risco de transformar sua trajetória brilhante num enigma desconfortável. Embora o general Abílio Kamalata Numa tenha minimizado a saída, alegando que a UNITA “deixou de fazer diplomacia nos Estados Unidos há muito tempo” (VOA, 2023), a verdade é que o gesto de Jardo coloca em causa a liderança de Adalberto Costa Júnior e a sua capacidade de segurar históricos descontentes.
Em última análise, Jardo, um político muito experiente, sai mal na fotografia, enquanto Chivukuvuku soma e segue nos seus desígnios. E Adalberto Costa Júnior tem sim motivos para se preocupar. A aceitação popular de que dispõe — com larga vantagem dos seus opositores — será insuficiente para o conduzir ao Palácio da Cidade Alta. É preciso compreender que as eleições não se ganham apenas com popularidade, mas com meios e ações políticas eficazes. Das duas uma: ou Jardo saiu por compromissos financeiros, ou Adalberto Costa Júnior não está a acomodar o interesse de históricos da UNITA, abrindo espaço para a migração de barões como o referido diplomata.
Como lembra o cientista político Paulo de Carvalho (2017), a fragilidade das instituições partidárias em Angola favorece estas migrações, revelando um sistema mais personalista do que programático. Nesse sentido, a política não é apenas disputa de espaço. É também prestação de contas — “governar é, antes de tudo, prestar contas”, como defende Pierre Rosanvallon (2015). Mas em Angola, a accountability ainda é rara, o que se aproxima do que Guillermo O’Donnell (1994) descreveu como “democracias delegativas”: sistemas em que os líderes agem mais como mandatários pessoais do povo do que como responsáveis perante instituições e militantes.
Se a decisão de Jardo é estratégica, que seja explicada. Se é pessoal, que seja respeitada. Mas que não seja silenciosa. Porque o silêncio, neste caso, não é diplomático — é sintomático.
Rui Kandove – In Facebook








